Ensaio Breve de Hermenêutica Político-Comportamental
Eu e o Cão damos grandes passeios. O Cão vai fazer seis anos, é um adulto ainda jovem, mas já com experiência de vida e uma personalidade perfeitamente consolidada.
Eu conheço-o bem, e ele conhece-me bem a mim. Nos passeios pelas ruas daqui da Bila percorremos por norma sempre os mesmos lugares. O Cão – chamemos-lhe aqui Fiel – reconhece as pessoas, as árvores, os canteiros dos jardins e as portas das casas; espreitamos a Gomes, onde somos invariavelmente recebidos com carinho pelas meninas empregadas, eu austero, de passagem e muito frugal, o Cão sempre na expectativa de um covilhete ou de um croquete de carne – que nunca lhe é dado, mas nunca se sabe, porque, como se costuma dizer, a esperança é a última coisa a morrer. Vamos depois avenida abaixo até às casas de banho que, para ele, ficam nas escadas da Câmara, fazemos a seguir a tradicional “volta do cemitério” em busca de novidades canídeas e florestais e, por fim, já de regresso, cansados mas contentes, saudamos no Cabo da rua Direita a irrequieta mas simpática Fifi, a popular cadelinha do senhor Carlos da casa das noivas e dos seus infelizes bridegrooms.
Uma vez em nossa casa é o mesmo padrão de consistência e de comportamento honesto e inteligente. O Fiel sabe sempre, como sói dizer-se, o lado do pão onde se espalha a manteiga. Sabe as horas do dia, distinguindo por exemplo as mais matutinas, em que não vale a pena levantar da cama, mesmo que alguém comece a remexer nos molhos de chaves que estão no hall de entrada, das dez horas da manhã, que é a hora de ir à rua para o primeiro passeio; e sabe igualmente quem vai fazer o almoço e qual é, por isso, o lado da mesa mais favorável, ou se a ementa é de molde a proporcionar sobras apetecíveis. E lê de uma maneira impecavelmente correcta as expressões e os moods de cada um de nós, percebendo quem está contente e porquê, podendo assim proporcionar a apreciada festa no cachaço, ou quem está triste e a precisar de um afago ou lambidela. Porque Deus, na sua infinita bondade e diligência, fez o Fiel um ser simultaneamente generoso e interesseiro, capaz de amar sem nada esperar de volta e de, ao mesmo tempo, esperar tudo em troca do mais insignificante gesto ou movimento.
Como as pessoas, afinal. Como eu ou como tu, caríssimo leitor. O Cão é tal e qual nós. Na minha opinião o Cão tem a inteligência de um português mediano, razoavelmente esperto, sólido, mas não demasiado brilhante, porventura um nadinha abaixo da média, mas de modo nenhum um estúpido, dessa estupidez confrangedora de muitos dos nossos compatriotas de duas patas: o Cão odeia, por exemplo, os gatos, o que é inteligente e lógico e por isso digno de elogio, despreza as pombas, o que é natural e de bom gosto, e rosna e ladra a todos os outros cães, o que é uma manifestação de elementar bom senso e de muita prudência, a qual só acrescenta à tal fineza mental que eu lhe atribuo: “desconfiemos, por princípio, dos nossos próximos,” parece dizer-me o meu Cão, depois de cada encontro com os demais canídeos. “Não lhes topas a falsidade? Não te dás conta de que, por detrás daquele sorriso largo e daquela língua pendente, espreita a vontade de morder?”
Se soubesse escrever e tivesse Facebook, o Cão Fiel manifestaria nos postes do seu mural as mesmíssimas opiniões, perfeitamente normativas, dos milhões de portugueses e de europeus e de norte-americanos que escrevem no Facebook, julgando as pessoas e os eventos segundo os critérios consabidos do senso comum, desconfiando por princípio dos seus semelhantes, escarnecendo da estupidez dos gatos e finalmente castigando, do alto da sua indiscutível honradez, a mais pequena sombra de venalidade nos políticos. E, se tivesse boletim de voto, o Cão votaria no PS, ou até no PSD, quer dizer um pouco à esquerda, ou ao centro-esquerda, para evitar abusos e pôr um travão à jactância da “direita.”
Só há, no Cão, uma característica que o faz parecer, aos meus olhos, menos inteligente do que habitualmente me aparece. É a característica de sempre, e sem qualquer excepção, ele gostar de seres humanos. O Cão odeia os gatos, despreza as pombas e desconfia, como se disse atrás, dos cães. Mas adora as pessoas. Nunca o vi, nestes anos que temos de convívio, ladrar ou rosnar a um ser humano, recuar perante a mão de alguém, amedrontar-se ao pressentir uma silhueta que se destaca, súbita, na noite cerrada. Nunca. O Fiel acredita nas pessoas, com a mesma crença na Nossa Senhora de uma beata no mês de Maria, com a mesma incondicional dedicação de um andrajoso devoto bengali de Críxena. Acredita e ama. O Fiel idolatra a Humanidade. É um crente na nossa bondade natural. O emaranhado misterioso das suas meninges primordiais faz o pequeno milagre de, no que tange aos seres humanos, transmutar o egoísmo dos indivíduos na generosidade da espécie. “É humano? É bom. O que lhe convém convém-me ipso facto a mim.”
Assim pensa o Cão.
Se, em condições normais, com base na sua conduta quotidiana de canídeo explorador, e farejador, e lambedor, eu lhe atribuo, digamos, um QI de 80, nestes momentos em que o vejo interagir com a demais humanidade sinto-me tentado a baixar-lhe o quociente de inteligência para os níveis já bem dentro do território do atraso mental, isto é, aí para os 65. E acho então que, se votasse, o Fiel votaria, não no PS ou no PSD, que são as escolhas sensatas e prudentes, mas na IL ou, pior ainda, num qualquer partido libertário, desses inspirados nos Mises e Hayekes da Escola Austríaca que me dizem existir lá fora, pelas Europas e pelas Américas, mas que, graças a Deus, ainda não existem em Portugal.
José Costa Pinto
Reformado da Função Pública