Entre o Estado e o Caos: Como Funcionaria uma Sociedade Anarquista? — E Por Que o Estado é uma Máfia Legalizada
Daniel Figueiredo
Será possível uma sociedade sem governo nem Estado? E se sim, como se organiza?
Estas perguntas, que à primeira vista parecem utópicas (ou até perigosas), têm sido objeto de debate intenso há mais de dois séculos, tanto entre filósofos políticos como entre ativistas, sociólogos e economistas.
Neste artigo, exploro com algum detalhe a diferença entre Estado e governo do ponto de vista anarquista, os vários modelos de organização social propostos pelas diferentes correntes do anarquismo, como estas ideias são enquadradas na ciência política — e por que razão a História seguiu um caminho aparentemente oposto: o da centralização crescente do poder.
Além disso, exploraremos a visão do Estado como uma “máfia legalizada” — uma organização coerciva que monopoliza a violência legítima, extrai rendas e limita a liberdade dos indivíduos, funcionando mais como um cartel criminoso institucionalizado do que como uma autoridade legítima.
1. Estado vs Governo: a distinção anarquista
Para os anarquistas, a verdadeira questão não é quem governa, mas se alguém deve governar coercivamente. Isso leva a uma distinção central:
Estado: É uma estrutura permanente, centralizada e coerciva que detém o monopólio da violência legítima (definição clássica de Max Weber). Cobra impostos, impõe leis e mantém-se independentemente de quem está no poder.
Governo: É o grupo temporário que exerce autoridade dentro do Estado. Pode mudar, mas a estrutura permanece.
Na perspetiva anarquista, o problema não é apenas o mau uso do poder — é o próprio poder centralizado, que viola a liberdade individual ao impor normas e decisões sem consentimento direto e voluntário.
Perspetiva anarcocapitalista hoppeana:
Hans-Hermann Hoppe acrescenta que o núcleo da autoridade legítima reside na propriedade privada absoluta e no direito de exclusão. Para ele, toda ordem social legítima é baseada em contratos voluntários e na soberania dos proprietários. A única “governança” aceitável é aquela que respeita a titularidade privada, rejeitando qualquer coerção que não seja consensual. Assim, rejeita não só o Estado, mas também qualquer forma de propriedade coletiva ou autoritária. Essa base funda a verdadeira liberdade individual.
2. Como funcionaria uma sociedade anarquista?
Nem todos os anarquistas propõem o mesmo modelo social. Aqui estão algumas das principais correntes, com as suas propostas distintas de organização:
Anarcocomunismo
Propriedade comum, abolição do dinheiro, distribuição segundo as necessidades.
Comunas autogeridas, federadas por baixo.
Exemplo histórico: coletivizações na Catalunha e Aragão durante a Guerra Civil Espanhola.
Teórico de referência: Piotr Kropotkin.
Anarcossindicalismo
A sociedade seria organizada através de sindicatos horizontais, que coordenariam a produção e os serviços.
Ênfase na luta de classes, ação direta e autogestão laboral.
Exemplo histórico: CNT-FAI em Espanha.
Teórico principal: Rudolf Rocker.
Mutualismo
Propõe mercados livres de privilégio estatal, com propriedade baseada no uso direto (não na especulação).
Apoia bancos mútuos, moeda livre, cooperativas.
Influência: Pierre-Joseph Proudhon.
Anarcocapitalismo
Defende mercados totalmente livres, incluindo segurança, justiça e moeda — sem Estado.
Toda propriedade privada seria legítima, desde que obtida por meios voluntários.
Teóricos: Murray Rothbard, Hans-Hermann Hoppe.
Exemplo discutido: a Islândia medieval.
Na perspetiva hoppeana, essa ordem anarcocapitalista é ainda mais específica: a segurança e justiça são providas por agências privadas concorrentes, contratadas livremente, com soberania restrita aos proprietários legítimos. Hoppe critica o sistema democrático estatal, argumentando que a democracia viola direitos de propriedade ao transformar a sociedade numa “ditadura da maioria”. A propriedade privada soberana é o pilar da ordem social legítima.
3. Onde entra isto na ciência política?
A anarquia é estudada em ciência política tanto como teoria normativa (uma visão do que "deveria ser") como fenómeno empírico (coletivizações, zonas autónomas, sociedades sem Estado).
4. Porque é que a História caminhou na direção contrária?
Se a anarquia é possível, por que é que a História se encheu de impérios, reis, repúblicas centralizadas e Estados totalitários?
Conclusão: Governança sem Estado?
Uma sociedade sem Estado não é sinónimo de caos. O anarquismo propõe ordens sociais complexas e funcionais baseadas na cooperação voluntária, e há exemplos históricos (da Islândia medieval às comunas espanholas) que ilustram essa possibilidade — mesmo que temporariamente.
Se me permites, creio que o próprio Estado monopolizou o conceito de Governo, e a própria definição que mencionas demonstra isso mesmo: “É o grupo temporário que exerce autoridade dentro do Estado.”
Governo, na minha perspectiva, são aqueles cuja qual responsabilidade é a de gerir determinado grupo: o Governo das famílias são os pais, o Governo das empresas são os executivos e os gestores, o Governo das associações são os administradores, o Governo de um grupo de amigos são os próprios amigos.
Se uma sociedade não possui Governo, não possui pessoas que assumam responsabilidades e aí sim, é o caos.
Creio que para a própria comunicação das ideias anarquistas ser melhor compreendida, é preciso desmistificar essa ideia de que é o Governo do Estado a única entidade capaz de assumir essa responsabilidade - o anarquismo defende a descentralização do poder e da responsabilidade, não a sua inexistência
aderido voluntáriamente