MARQUÊS DE POMBAL: UM HINO À NOSSA SUBSERVIÊNCIA
Acabámos de sair de uma farsa pandémica e entrámos numa histeria maniqueísta.
Uma das características centrais que perpassa ao longo destes últimos dois anos foi a submissão da população portuguesa a todos os ditames da sua casta dirigente; os seus atropelos aos direitos e liberdades não geraram qualquer assuada ou indignação digna de registo.
Na minha óptica, nada disto constituiu uma surpresa: a permanente coluna dobrada e o inexistente apreço à liberdade tem séculos. Podíamos situar esta decadência com o regime inaugurado pelo Marquês de Pombal, um dos maiores facínoras e corruptas personagens da nossa história de quase nove séculos. Apenas o povo português logrou erigir uma estátua colossal na avenida mais importante da sua capital ao maior tirano da sua história.
Para atestá-lo, irei usar a recente biografia de Pedro Sena-Lino sobre o Marquês de Pombal, “De Quase Nada a Quase Rei”. Esta obra veio reforçar a indignação que estátua suscita.
Esta biografia deveria ser de leitura obrigatória, certamente lograria eliminar a propaganda - manuais de história, programas de televisão, livros – a que todos fomos sujeitos em relação ao personagem mais sombrio da nossa história.
Neste sentido, através do presente artigo, destaco alguns episódios desta brilhante obra.
Curriculum vitae manchado
D. João V, o pai de D. José I, casou-se com uma austríaca, Maria Ana Josefa de Áustria, pertencente à Casa de Habsburgo. O nosso Marquês de Pombal também se casou com uma austríaca, Eleonora Ernestina von Daun. Conheceu-a quando foi enviado a Viena pela corte de D. João V a intermediar um conflito entre o Sacro Império Romano e o Vaticano.
Depois do seu casamento com Eleonor, e terminada a sua missão em Viena como mediador, o Marquês de Pombal regressou a Portugal, passando a estar necessitado de emprego. A sua esposa ajudou-o nessa tarefa: como? Tentou meter uma cunha junto da rainha, no sentido de o nomear ministro – designado então por secretário de estado.
Quando a cunha chegou a João V, qual era a opinião deste em relação ao ilustre Marquês de Pombal. Este respondeu assim à mulher, quando esta “fortemente instava para que o fizesse secretário de estado”, que o ex-enviado tinha “irremediáveis defeitos”. Mais: porque o Rei sabia-o “dotado de boa capacidade, delicadeza de engenho, e agudeza de juízo, tinha espírito sanguinolento, génio vingativo: era mal afecto à sua religião, desprezador do estado, e jurisdição eclesiástica, e tudo isto eram do seu conceito, circunstâncias muito atendíveis, que o inabilitavam para aquele ministério.”
O ancião D. João V era um sábio: já pressentia o verdugo em que se tornaria o notável Marquês de Pombal. Depois da morte deste, a ocultação de tal opinião, faz-nos recordar aqueles que são propostos na Europa com resumos biográficos contrafeitos, em que as trapalhadas do passado são dissimuladas e o favor sem pudor é evidente.
O instigador da Bufaria
Em 1756, o prócere Marquês de Pombal ainda não era o senhor absoluto do país, mas para lá caminhava; nesse ano, já era membro do governo há 5 anos, desempenhando o cargo de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.
Nas outras duas secretarias, encontravam-se Pedro da Motta, o Secretário de Estado do Reino – o mais importante cargo, equivalente à de um primeiro-ministro na actualidade - , e Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos.
Este último, supervisionava o trabalho do irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o então governador do Brasil – o nepotismo dos irmãos Carvalho e Melo parece-nos familiar!
Ora, no início da 1756, Pedro da Motta faleceu, deixando vago o posto mais importante da nação. De imediato, os opositores do Marquês de Pombal iniciaram uma conspiração contra este, tentando afastá-lo não só do cargo, mas também do governo. Entre os conspiradores encontravam-se o Duque de Aveiro – depois envolvido e executado no processo dos Távoras – e Francisco Teixeira de Mendonça. Este último, foi o autor de uma carta anónima escrita a um grande de Espanha.
Naquele tempo, esta forma de denegrir alguém, consistia em escrever uma missiva sem autor, com a aparência de correspondência privada, mas fazendo-a, claro está, chegar à opinião pública: conventos, casas de nobreza, casas do comércio.
A carta punha a nu os podres do Marquês de Pombal: um alpinista social, que tinha chegado ao poder sem um tostão, carregado de dívidas, e possuidor de um enorme complexo de inferioridade, dado pertencer à baixa nobreza. A carta obviamente chegou ao conhecimento do Rei.
Em paralelo, os jesuítas realizaram um relatório sobre a administração do irmão do Marquês de Pombal, tal como sobredito, o então governador do Brasil: claro está, com imensas queixas em relação a este último. Não espanta que depois tivessem sido perseguidos sem quartel, causando um desastre sem paralelo na educação da população portuguesa – um rifenho, que não perdoava.
Em face destas duas “bombas”, D. José I não actuou de imediato; solicitou uma auditoria do relatório dos inacianos a Lucas de Seabra da Silva, um homem então muito considerado e mestre de leis.
Os conspiradores acertaram na estratégia, mas cantaram vitória cedo; o sentimento de confiança era tal, que começaram a tratar de assuntos da corte, assumindo postos que ainda não lhes tinham sido confiados, trocando correspondência eles. Estas relações por escrito não escaparam aos inúmeros espiões colocados na administração da corte pelo insigne Marquês de Pombal. Este último mostrou-as a D. José I, tendo este ficado impressionado com a violência dos vitupérios ao seu ilustre ministro. A primeira “bomba” perdia o detonador.
Em relação à segunda “bomba”, a averiguação de Lucas de Seabra da Silva teve resultados: “a favor dos jesuítas e muito contra o governador”. O Marquês de Pombal, como exímio manipulador, logrou abordar Lucas de Seabra da Silva e solicitar-lhe a leitura do texto; no final, aconteceu o esperado: convenceu-o a modificar a versão, alterando-a a favor do mano e contra os inacianos. Era o mestre da conspiração palaciana.
Quando Lucas de Seabra da Silva foi chamado por D. José I para entregar as suas indagações, teve que apresentar uma desculpa, dizendo que teria de recolher esses documentos a sua casa. No regresso a esta, faleceu, tal o remorso que sentiu, dada a sua fraqueza em face da loquacidade sedutora do Marquês de Pombal.
Como terminou tudo isto? O ilustre marquês terminou nomeado para o almejado posto: Secretário de Estado do Reino.
Seguidamente, obteve a prisão de todos os conspiradores, através de legislação decretada no início do reinado de D. José I – sempre se encontra algo na legislação para destruir quem se opõe ao poder -, que assim rezava: “o prestígio dos representantes do poder majestático e a interditar de uma vez costumes antigos...como a factura e a distribuição de textos satíricos e libelos famosos.” A liberdade de expressão já era muito ampla naqueles tempos, tudo servia para calar as vozes incómodas!
Em paralelo, eliminou o seu principal adversário político: Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos. Este último, apesar de não ter participado na conjura, teve a ousadia de criticar publicamente o Rei: este era o culpado pelos constantes benefícios a favor do Marquês de Pombal. Qual o seu fim? Foi preso e deportado para Mazagão (antiga possessão ultramarina portuguesa no actual Marrocos).
Para terminar de forma espectacular, nomeou o seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos! Este passou a ocupar o posto do pobre Diogo de Mendonça! O poder absoluto terminou entre os manos, pois o seu outro irmão, Paulo António de Carvalho e Mendonça, terminou como Presidente do Conselho do tribunal do Santo Ofício – o nepotismo não tinha limites! Isto faz-nos recordar algo, não?
O leitor pergunta, e então o instigador da bufaria? Ora, no final de tudo isto, para que nunca mais fosse possível outra conjura contra o sagrado Marquês de Pombal, decidiu emitir um “decreto específico que alargava os incitadores de ofensas contra ministros que despachassem com o monarca...e abrir e conservar uma devassa em segredo, e sem determinado número de testemunhas, onde pudesse qualquer pessoa ir delatar, sem receio de algum tempo, se poder revelar o segredo, toda a conspiração contra a vida dos ministros de Estado, nomeando para juiz dela um desembargador da sua confidência, e prometendo grandes prémios e perdão de culpas”. Para os bufos tudo! Parece que nada mudou desde então!
O enriquecimento pessoal por decreto
A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada por um alvará de 10 de Setembro de 1756. A razão da sua fundação? Existia, segundo os seus promotores, “uma anomalia de mercado” que urgia corrigir: o planeador central sempre aparece, que nunca investiu um cêntimo do seu bolso, a opinar e a impor a sua vontade sobre o malvado mercado.
Qual era essa anomalia de mercado? Dizia-se que tinha “crescido o número dos taverneiros da cidade do Porto a um excesso extraordinário”, acusados de “adulterar” e “arruinar” o vinho. Faz sempre enorme confusão que alguém esteja interessado em enganar perpetuamente os seus clientes, como se estes fossem absolutos ineptos para aquilatar a qualidade do que compram.
A companhia era um monopólio; previa preços fixos de compra aos produtores - isto de concorrência é sempre desagradável, nada como preços fixados administrativamente –; e detinha o monopólio da exportação.
Os artigos da Companhia fixavam um território para a produção dos vinhos do Porto; mas eis que surge um aspecto curioso. O único território fora desta área delimitada coincidia – surpresa! - com a do “principal fornecedor individual”: as vinhas que pertenciam ao conspícuo Marquês de Pombal; segundo as suas palavras, os seus vinhos, produzidos em Oeiras, melhoravam o corpo e o paladar dos vinhos do Douro e davam-lhes uma cor mais forte. O topete do nosso Marquês não tinha limites!
O homem não tinha qualquer rebuço para se enriquecer a si e aos seus acólitos. O seu amigo, o dominicano frei João de Mansilha, descendente de uma família de vinhateiros e que participou na elaboração dos artigos da Companhia, também tinha incluído na região demarcada quintas de parentes seus!
Em 1773, atravessando problemas de liquidez, o nosso amado Marquês de Pombal propôs a Francisco Mendanha a venda sua Quinta do Porto de Vila Velha de Ródão, pois fazia todo o sentido: a propriedade era contígua à propriedade de Francisco Mendanha, tinha enorme rendimento, dado que se beneficiava do comércio portuário. Perante tal magnífico negócio, Francisco replicou que o preço pedido pelo Marquês de Pombal não fazia qualquer sentido, dado que a quinta não era mais que “umas casas de pedra, e barro...”. Mas eis que surge a nossa ilustre figura histórica: prometeu-lhe que a expensas do governo, far-se-iam enormes melhorias na propriedade, permitindo esta se beneficiasse ainda mais do comércio portuário.
O dinheiro público a olear um negócio privado, nada que pareça invulgar nos nossos dias! O homem acabou convencido; no entanto, mais tarde, solicitou a anulação do negócio. O que lhe aconteceu, em consequência de tal desfaçatez? Foi parar à cadeia, e teve sorte em não ter perdido a vida. O tratamento era sempre o mesmo para adversários e revoltosos, ninguém brincava com o todo-poderoso Marquês de Pombal.
No final da vida, o Marquês de Pombal era proprietário de um enorme império imobiliário: segundo a sua versão, tal façanha apenas provinha dos seus salários de funcionário e heranças – na verdade, uma montanha de dívidas - que tinha recebido. A onde já vimos uma história igual?
Para construir e valorizar tal império imobiliário, muitas dúvidas surgiram sobre a sua origem e métodos. Desde obras no porto de Paço d’Arcos, por forma a facilitar o escoamento dos seus vinhos da sua propriedade em Oeiras, realizadas à custa do erário público; à estrada entre Lisboa e Oeiras, por ele mandada construir, obviamente paga com recursos públicos, que obrigou a trabalhos complicados no Alto da Boa Viagem, para facilitar as suas viagens entre Lisboa e Oeiras ao fim-de-semana; ao palacete nas Janelas Verdes, herdada do seu irmão Paulo e que tinha pertencido à família dos Távoras – aquela que foi acusada e executada sem provas pela tentativa de regicídio; às casas arrendadas a um preço elevadíssimo a estrangeiros que vinham a Portugal fazer negócios com investimento público, como foi o caso do seu amigo Ratton, que geriu a fábrica de chapéus na Rua Formosa, tornando-a depois sua casa particular – actual sede do Tribunal Constitucional.
Mas a cereja no topo do bolo do seu império imobiliário foi o chafariz da Rua Formosa, onde o Marquês possuía vários imóveis, muitos por si “adquiridos” – muitas dúvidas existem na utilização do erário público para tais aquisições - durante reconstrução da cidade após o terramoto. Foi-lhe autorizado pelo Rei a sua utilização apenas para “sobras”, com o propósito de levar água canalizada ao seu palácio e a outras suas propriedades. Muitos dos beneficiamentos do dito palácio, como a entrada, foram realizados à custa do erário público. Apenas em 2008, vejam só, confirmou-se, depois da investigação subterrânea de Fernando Teigão e Pedro Costa, que afinal não tinham sido só as sobras, mas tinha ocorrido o efectivo desvio de águas públicas para as propriedades do nosso estimado marquês!
Após a morte do Marquês de Pombal, William Beckford, um aristocrata inglês, escritor de viagens e político inglês, contava a respeito do seu filho, Henrique José de Carvalho e Melo, o seguinte: “Embora ele – o filho de Pombal – seja uma das maiores fortunas portuguesas, cerca de cento e dez mil coroas de rendimento anual, quis-me fazer acreditar que o pai tinha morrido em péssimas circunstâncias, sobrecarregado de dívidas contraídas para manter a dignidade da sua posição e a honra do país”.
Há tempos atrás, um insigne ex-membro da oligarquia do nosso regime, explicava-nos a origem da sua fortuna: resultava de uma herança de 1 milhão de contos da sua mãe e que se encontrava num cofre. Ainda hoje, desconhecemos a forma como tal pecúlio foi transformado em Euros. Isto afinal não mudou muito desde então!
O mestre da propaganda
Já em Pombal, depois do seu reinado de terror durante quase 30 anos, e afastado de Lisboa e da Corte, D. Maria I ordenou uma investigação aos “negócios” do Marquês de Pombal, por essa razão, esse período denominou-se de “Viradeira”.
Para se defender, em 1777, publica umas cartas em inglês, denominadas Letters from Portugal. Estas cartas tornam-se conhecidas da opinião pública portuguesa apenas no ano seguinte. O ilustre Marquês de Pombal, o autor, afirmou que apenas teve conhecimento das mesmas em 1780. Além disso, teve de as mandar traduzir, pois não sabia inglês – um homem que esteve anos como embaixador de Portugal em Londres e que tinha de ler todos os dias a imprensa! As cartas, claro está, constituem um encómio à sua governação – pura propaganda.
E como sabemos que ele foi o autor desta propaganda? Na colecção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal de Portugal, a mesma versão da carta, em português, foi encontrada, com anotações, correcções e cortes da pena do nosso louvável Marquês de Pombal.
Durante toda a sua vida usou da propaganda e de falsas acusações para atingir os seus propósitos – para eliminar, vingar, calar, intimidar - , como foi o caso da expulsão dos jesuítas e do processo dos Távoras.
Conclusão
O actual regime continua a idolatrar o homem responsável pelo nosso atraso endémico, em consequência das suas “brilhantes reformas”: desde o século XIX, a nossa decadência económica face aos demais países é uma sina que nos persegue. Na verdade, desde o final do seu regime, tornámo-nos num bando de analfabetos e ineptos.
Não espanta que aceitemos um regime que nos retira as liberdades individuais. Não espanta que não nos indignemos com o nepotismo dos nossos governantes. Não espanta que não nos suscite qualquer curiosidade a forma como alguns governantes apareçam com enormes fortunas, depois de terem estado no poder vários anos, sem qualquer explicação sobre a sua origem. Não espanta que o país não se indigne que as crianças, em particular as mais pobres e desfavorecidas, sejam votadas ao analfabetismo e ao sedentarismo. Não espanta que surjam de todos os quadrantes apelos ao respeitinho pelo poder, que deverá ser sempre sagrado e intocável. Não espanta que os negócios entre amigos e correligionários nunca sejam objecto de investigação. Não espanta que tenhamos um enorme apreço por quem nos trata com o azorrague a toda a hora. Não espanta que sejamos a todo o momento ludibriados pela propaganda em uníssono de toda a imprensa, paga pelo nosso dinheiro, em lugar de leitores e audiências.
A colossal estátua do maior facínora da nossa história é intocável para o actual regime: será que enferma dos mesmos defeitos do ilustre marquês?
Luís Gomes
Gestor - Faculdade de Economia de Coimbra - e empresário