Os Teólogos da Liberdade: Escolástica de Salamanca e o Pensamento Libertário
Para desespero dos mais tradicionalistas e beatos, a Escolástica de Salamanca influenciou, sim, o pensamento libertário, tanto a nível económico como no que toca à soberania do indivíduo. E de nada serve escudarem-se em dogmas de cariz teológico para o desmentir, pois é factual. Os pensadores desta escola foram pioneiros em muitas das ideias que hoje sustentam o liberalismo e a Escola Austríaca de Economia, defendendo a propriedade privada, a limitação do poder estatal, a resistência ao tirano e a livre concorrência.
Resistência ao Poder Tirânico e Direito à Rebelião
Francisco Suárez e Juan de Mariana foram dos primeiros a formular teorias sobre a limitação do poder do soberano, colocando-o sujeito a leis morais e naturais. Mariana, em particular, foi ousado ao defender abertamente a possibilidade de resistência ao tirano, incluindo o tiranicídio se necessário. No seu livro De rege et regis institutione (1599), argumenta que um rei que oprime o seu povo e governa arbitrariamente perde a legitimidade e pode ser removido pela força. Esta ideia ressurge em movimentos libertários modernos, que rejeitam qualquer governo que viole as liberdades individuais.
A ideia de que o indivíduo não deve submeter-se passivamente ao poder estatal é um dos princípios basilares do libertarianismo. Assim, muito antes de John Locke ou dos Pais Fundadores dos Estados Unidos defenderem a resistência ao despotismo, os teólogos da Escola de Salamanca já formulavam a mesma tese.
Crítica às Políticas Monetárias e ao Roubo Estatal
Martín de Azpilcueta e Tomás de Mercado perceberam, séculos antes de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, os efeitos da inflação causada pela manipulação monetária. Azpilcueta observou que a chegada do ouro das Américas não tornou os europeus mais ricos, mas sim provocou uma subida generalizada dos preços. Isto foi uma antecipação clara da teoria quantitativa da moeda, que explica como o aumento da oferta monetária sem um aumento correspondente na produção de bens leva à inflação.
Da mesma forma, Juan de Mariana criticou a desvalorização da moeda, prática comum dos monarcas da época, chamando-a de roubo. Para ele, quando um rei adulterava a moeda—reduzindo o teor de metal precioso ou emitindo novas moedas sem lastro suficiente—estava a cometer um assalto disfarçado. Esta visão é idêntica à da Escola Austríaca, que denuncia a impressão descontrolada de dinheiro pelos bancos centrais como um ataque à poupança e ao poder de compra das pessoas.
Além disso, Mariana condenou os impostos excessivos, defendendo que o Estado não tem o direito de expropriar a riqueza do cidadão de forma arbitrária. Os libertários modernos seguem a mesma linha ao afirmar que a tributação, equivale a roubo.
A Teoria Subjetiva do Valor e o Livre Mercado
Luís de Molina foi um dos primeiros a desenvolver a teoria subjetiva do valor, que seria aprofundada séculos depois por Carl Menger e outros economistas austríacos. Ele argumentou que o valor de um bem não depende dos custos de produção, mas sim da utilidade que tem para quem o consome. Esta ideia desmontou a visão predominante de que o preço justo de um bem deveria ser determinado por regras morais ou pela quantidade de trabalho envolvida na sua produção.
Além disso, os escolásticos de Salamanca, incluindo Tomás de Mercado, defenderam que os preços deveriam ser estabelecidos livremente pelo mercado, sem interferência do Estado ou da Igreja. Mercado escreveu que "os preços variam conforme a abundância e a escassez dos bens, e não por decreto real". Esta é uma defesa clara da livre concorrência, um princípio central do pensamento libertário e austríaco.
Outro ponto relevante foi a defesa de que as taxas de juro deveriam ser estipuladas pelo mercado e não por imposições externas. Muitos dos escolásticos refutaram a ideia de que cobrar juros era sempre um pecado, explicando que, num mercado livre, o juro representa o preço do dinheiro no tempo. Isto antecipou as teorias modernas sobre o papel dos juros na economia e a crítica à manipulação estatal das taxas.
Conclusão
É inegável que os escolásticos de Salamanca lançaram as bases para muitos dos princípios que hoje estruturam o pensamento libertário e a Escola Austríaca de Economia. A defesa da propriedade privada, da soberania individual, da resistência ao poder tirânico, do livre mercado e da estabilidade monetária são ideias que estes pensadores defenderam com grande antecedência.
Ignorar ou tentar negar esta influência é um erro, seja por ignorância ou por preconceito ideológico. O pensamento libertário não nasceu no século XX, nem é um exclusivo de economistas modernos. A sua raiz está, em grande parte, na Escolástica de Salamanca—e isso é um facto histórico que ninguém pode apagar.